A luta pela humanização se faz entre as fronteiras da ética, da moral e da lei. A grosso modo, a ética trata do bem ideal, a moral do bem real e a lei se propõe a regular de modo geral o trânsito dos cidadãos e cidadãs, entre o real e o ideal.
Se as fronteiras entre esses espaços não se encontram nunca bem definidas, há uma ética de fronteira de difícil e problemática regulamentação. Uma delas é o aborto, especialmente quando se configura como dilema ético. O problema ético, a escolha entre bem e mal, tem sempre solução mais fácil. O dilema, a escolha entre bem e bem ou entre mal e mal, nos convida à humildade e à tolerância.
O bispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso, não acredita em dilemas nem na elasticidade de fronteiras. Administrando espaços religiosos acima dos espaços humanos e leis acima das leis, enviou para o inferno alguns adultos, pais e médicos, que promoveram o aborto de gêmeos de uma criança de nove anos que havia sido estuprada e corria riscos pela precoce e agressiva gravidez.
Sem tentar questionar os documentos que autorizam a administração pelo bispo das fronteiras entre céu e inferno e sem ter coragem de solicitar firma reconhecida para as leis de Deus, somente me pergunto se passou alguma vez pela santa cabeça do santo prelado que a sociedade estava decidindo entre dois abortos. Ou o aborto permitido pela Igreja de uma criança de nove anos, com linguagem, história, sonhos e projetos ou o proibido aborto zigótico, pelo dogma religioso, inclusive nesse caso específico, estupro, onde conta com o apoio das leis do país.
Se as leis pecam por generalizar, mas têm a vantagem de serem provisórias e circunstanciais, as leis de Deus absolutizam as generalizações e são permanentes e irrevogáveis. Portanto, o direito de legislar em nome de Deus é de indestrutível tirania.
Diante disso, se em tese devemos ser todos favoráveis à vida e contra o aborto, em casos particulares devemos defender o aborto como única possibilidade de sermos fiéis à vida.
No campo do simbólico, devemos continuar nossa luta contra o aborto de sonhos, aborto da justiça e aborto da igualdade, mas algumas leis favoráveis ao aborto devem ser promulgadas imediatamente. Abortar a corrupção no momento da concepção do projeto, abortar a violência no útero das relações assimétricas, abortar a intolerância no parto do dogmatismo, deve fazer parte da nossa pauta cidadã.
Nesse campo, na maioria das vezes, somente o transgressor é realmente ético. Afrontar leis dos homens e leis de Deus, em nome da vida, arriscar-se ao inferno de Dom José no desejo de construir um paraíso na terra, abortar um dogmatismo destrutivo e assassino, seria talvez o mais desejável projeto a ser assumido nesse mundo complexo.
Surpreendentemente, estaríamos mais próximos de Jesus de Nazaré, aquele que por amor ao amor, enfrentou as leis dos homens e as leis de Deus de seu tempo e sua época, e que paradoxalmente seria o atual patrono oficial e institucional de Dom José, bispo de Recife e Olinda, aquele que facilmente arrisca a vida de uma criança de nove anos.
Marcos Monteiro é assessor de pesquisa do CEPESC. Mestre em Filosofia, faz parte do colégio pastoral da Primeira Igreja Batista em Bultrins, Olinda, PE e da Comunidade de Jesus em Feira de Santana, BA. Também é coordenador do Portal da Vida e faz parte da diretoria do Centro de Ética Social Martin Luther King.
CEPESC – Centro de Pesquisa, Estudos e Serviço Cristão. E-mail cepesc@bol.com.brFone: (71) 3266-0055. Veja esse texto também no site www.portaldavida.net
Feira de Santana, 06 de março de 2009.
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