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Capital do Ceará, Ceará, Brazil
cearense,ex aluno Marista,canhoto,graduado em Filosofia pela UECE, jogador de futebol de fds, blogueiro, piadista nato e sobretudo torcedor do Ceará S.C. Não escreveu livros, não tem filhos e não tem espaço em casa para plantar uma árvore.

sábado, 23 de janeiro de 2010

O BBB e a filosofia


Por que o BBB tem espantosa audiência? Se os que estão na Casa são interessantes e bonitos e, além disso, criam um tipo de novelinha por “flashes”, por que não ver? Além disso, após um dia estafante, quem resiste a uma poltrona acompanhada de um convite para esvaziar a cabeça diante da impecável imagem da Rede Globo?


Mas os grupos ditos mais politizados da sociedade não gostam de explicações desse tipo, em que não se possa culpar alguém. A esquerda e a direita têm suas teorias.


A esquerda adora a palavra “alienação”. O sociólogo que leu algum manual marxista vocifera: “o público é vítima da manipulação da Rede Globo”. A direita tenta posar de culta: “ah, se nosso povo fosse educado, esses programas imorais não teriam vez”. Por sua vez, sempre atenta ao que imagina como sendo os “formadores de opinião”, a Globo busca anular esses pequenos grupos opositores com a fala de Bial, que é o “intelectual” da emissora. No BBB-10 (o atual), ele brindou os telespectadores com a frase “BBB também é filosofia”. Sei lá qual a razão dele ter falado isso, não pude acompanhar o resto. Ora, o BBB é filosofia? É claro que não no sentido dito pelo Pedro Bial, seja lá qual tenha sido, mas que o programa tem uma audiência explicável pela filosofia, isso é verdade.


O que é necessário notar, no caso, é como que o desdobramento da cultura, em especial a cultura moderna, chegou ao que chegou nos fazendo abraçar a TV na época do “Big Brother Brasil”.


No fundo da alma do homem moderno repousa um longo tapete, tecido por séculos e séculos. Esse tapete ganhou camadas e mais camadas, forrando a subjetividade e ao mesmo tempo forçando as paredes do espírito. Hegel e Nietzsche foram os filósofos que procuraram descrever esse processo apontando para o cristianismo, uma religião tipicamente subjetiva e, assim, bem diferente do paganismo, como um elemento de abaulamento da alma, algo que se tornou fundamental na modernidade. Heidegger, no século XX, fez mais: mostrou a modernidade como uma época em que a narrativa das ciências impera no mundo e, com ela, a idéia de que tudo pode ser dito a partir da relação sujeito-objeto. O sujeito é o que conhece e o que julga, o objeto é o conhecido e o avaliado. Não há estudante na universidade atual que, ao fazer metodologia científica, não seja posto diante dessa regra: o sujeito epistemológico e o objeto da ciência em questão – eis aí o que se tem de entender.


Foucault leu Hegel, Nietzsche e Heidegger. Ele preferiu localizar esse processo de ampliação da subjetividade, essa sofisticação das camadas de tecido do tapete da alma, de uma maneira um pouco diferente. Ele notou que talvez não fosse interessante dar crédito, ao se ler Platão falando de Sócrates, na frase “conhece-te a ti mesmo” como uma frase centrada na idéia de “saber”, e sim na idéia de “cuidado”. Conhecer-se, disse Foucault, nunca foi para Sócrates algo vazio, o conhecer pelo conhecer, mas implicava em uma doutrina do saber viver, dizia respeito ao cultivo de si e, este si, já estava circunscrevendo os poderes da alma, do intelecto, da razão. Antes mesmo que o helenismo tardio dominasse o mundo europeu, Sócrates já seria alguém menos preocupado com o conhecimento, com as Formas platônicas enquanto objeto do conhecimento, e mais afeito a elas enquanto guias para o bem viver.


Assim, Foucault traçou o panorama que desembocou na modernidade. Criamos o “interno” e o “externo” e, nesse mesmo processo, demos importância ao “interno”, a alma. Nessa tarefa, fixamos o que há de verdadeiro como sendo o que há em nosso “íntimo”, sendo tudo o resto o “externo” e, efetivamente, o resto – o que sobra, o que pode sobrar. Com isso dividimos o que entendemos por personalidade: tudo que é nosso, nossa verdadeira personalidade, estaria em nosso íntimo e, no mundo burguês, protegido pela privacidade que, enfim, antigos e medievais não conheceram. Tudo que é o não-verdadeiro e até o falso, o descartável, está na periferia ou no “exterior”, na vida pública. A política e o mercado nos tornam homens públicos, isto é, pessoas que, uma vez no palco, não apresentariam nada além do que é o não-verdadeiro em suas personalidades. Fora do palco, a quatro paredes, o íntimo poderia se manifestar e, então, teríamos acesso ao que há de verdadeiro em cada um de nós. Sendo que tudo que há de verdadeiro é só o que há dentro de cada um de nós – uma vez que até Deus veio parar no nosso coração por meio da religião do amor –, então, nada melhor do que a observação da intimidade para se chegar a uma instância sólida. Ora, mas a intimidade é, também, o lugar do prazer moderno par excelência, que é o sexo. Então, observar o sexo termina por ser, para o homem moderno, o lugar efetivo de contemplação da verdade. Trata-se da verdade de cada um, mas também, da própria Verdade.


Nesse sentido, o BBB realmente tem filosofia. Ficamos presos ao BBB por vários motivos, mas filosoficamente ele nos ganha porque acreditamos – uns de maneira clara para si mesmos e outros apenas por impulsos formados por séculos do desenvolvimento cultural – que vamos dar de cara com a verdade dos que estão na Casa e, então, descobrir a verdade sobre nós mesmos, sobre o Homem, sobre tudo que somos na Terra. O BBB é como que um trabalho de metafísica para os que nunca se imaginaram com alguma necessidade metafísica. Não é religião, é filosofia. Não se trata de encontrar Deus. Mas se trata de encontrar um parente próximo dele, a Verdade.


Quem somos nós, afinal? Eis aí a pergunta que está lá nas entranhas das sinapses de cada telespectador que, como o Homer Simpson, segura a cerveja na mão e espera se haverá um não uma “enrabada” no BBB. Esse sentimento chulo, esse gosto pela fofoca, nada é senão uma forma que só se faz presente porque estamos envolvidos até o último fio de cabelo com a idéia de que vamos captar ali, principalmente no sexo, que é o núcleo da intimidade, o modo de seguir do dístico do Templo de Apolo, o “conhece-te a ti mesmo”.


Foucault não só ensinou isso, ou seja, como entender o BBB, mas ele também quis mostrar que essa esperança era vã. Não há nada de mais verdadeiro no “lado interno” em detrimento do “lado externo”. Somos múltiplos, e nossa cara pública e nossa cara particular e íntima não são o verdadeiro e o falso, e sim apenas lados de uma mesma moeda. Lados de uma moeda são ou ambos verdadeiros ou ambos falsos. Aliás, não somos moedas, pois não temos só duas caras – temos muitas.


Não vamos satisfazer nossa necessidade metafísica pelo BBB. Mas acreditamos tanto nisso, que assistiremos o próximo, para a felicidade do Boninho e para o regozijo de um Bial que está cada vez mais chato.


Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo.